Resenha da obra literária, “Memórias de uma Kuvale”, de Aníbal Simões



Por Katssekya Samuel

Decorria o dia 26  de dezembro do ano de 2022, quando li a obra literária “Memórias de uma Kuvale”, de Aníbal Simões.  Trata-se da quinta obra do escritor. É uma obra com cento e cinquenta e nove páginas, subdividida  em oito capítulos. Li o livro em cinco dias de forma emocionante. 

Não só porque  venceu do prémio literário, Sagrada Esperança, edição especial 2022, do centenário de Agostinho Neto, organizado pelo ministério de Cultura, do  Turismo e Ambiente, patrocinado pelo Banco Caixa Angola. Mas também pelo facto de  Aníbal  Simões presentear os seus leitores com uma obra repleta  de revelações  do grupo étnico Kuvale. A veia artística, o respeito pelas mulheres, a  indignação   contra a  miséria, a fome, a seca, a violência  contra  as  mulheres,  o incesto, o abuso sexual contra as crianças e adolescentes, permitiram  ao escritor criar e trazer ao de  cima situações sombrias vivenciadas por crianças e mulheres dessa comunidade.  Neste livro, muitas mulheres são obrigadas a esconderem-se nas sombras do silêncio para não serem banidas do grupo étnico.  E, para obra ser mais profunda, o autor resolveu usar a técnica autobiográfica como forma de protesto em relação a certos homens que tratam as mulheres de forma insignificante em todos os sentidos. E,  a meu ver, a empatia  foi a cereja no topo do bolo.

A obra narra as vivências de uma  kuvale , que dá pelo nome de Pepela, desde a infância até à fase adulta.  O autor presenteia-nos com várias personagens secundárias como o  Pai de Pepela,  Kutatu,  Namphahesi, primo do  primeiro grau, que se tornou o marido da personagem principal, o tio Ukwacili, amigo e cunhado do pai, a tia Lussinga uma das mulheres do pai, e, por fim, Omeva, uma das esposas de Namphahesi. A história decorreu  entre a cidade de Moçâmedes, Namibe, e  Humbia, uma localidade do município da Bibala, entre 1974 a 1992.  Dentre os diversos fenómenos sociais,  para além dos problemas intrafamiliares, a personagem também vivenciou momentos de guerra. Este evento descambou para angústia e medo em relação ao futuro.  Para além da vítima sofrer de  ansiedade, logo no primeiro capítulo,  também sofria de uma  crise de identidade. Afirmamos isso pois,     Pepela  narra que  o pai a  registou com o nome Maria Conceição das Neves, em detrimento do seu nome africano, para gozar de algumas benesses do período colonial.

 O pai de Pepela  era  detentor de uma  boa inteligência social, porque no período colonial  era uma pessoa rica e influente naquele grupo étnico, dado o número de cabeças de gado bovino que possuía.  Pepela frisa que não teve “uma infância nem boa nem má” (p.8)  pelos critérios que referenciaremos nos parágrafos seguintes.  Verdade seja dita, ao referir que a infância não fora má nem boa, admite que teve vivências negativas como, por exemplo, a de ter de  casar -se cedo de mais, e sem o seu consentimento, o ter de estudar  às escondidas do marido, a obrigação de ter um filho para ser respeitada pelo marido. Para não falar de outros acontecimentos que, naquela cultura ,são aceites e, que para o direito positivo, constituem um dispositivo de violência contra a mulher. Um outro aspecto a realçar  foi o projecto educacional de seu pai.  Este permitiu  que ela entrasse em contacto com os brancos , com os  hábitos e costumes da cidade, não pondo de lado o apoio social que teve pelo facto de ter vivido na casa da tia Lussinga. O pai era uma pessoa ausente por causa dos negócios que tinha fora do grupo e pelo número de mulheres que possuía. No entanto,  era o grande suporte  social de Pepela. Foi dele o projecto de a mesma estudar na escola colonial, coisa que raramente acontecia entre os Kuvale tradicionais. Para estes, escrever e ler não eram assim tão importante, porque precisavam apenas de desenvolver habilidades para cuidar dos bois.


Em verdade, a  formação académica fez com que a personagem tomasse consciência de que  ter relações sexuais com o primo do primeiro grau,  casar-se aos 11 anos com uma pessoa mais velha , era  normal na sua cultura. Note-se que, no direito positivo, trata-se de um  abuso sexual contra a criança.  Por outro lado,  os sonhos e as opiniões das mulheres não eram tidas em conta. É o caso da personagem não poder  chamar o  marido pelo nome,  publicamente, sem antes lhe dar o primeiro filho. Estes são sinais de violência psicológica. A despeito disso, a mesma começou a ter sentimentos contraditórios, pois não pertencia  ao seu sistema cultural nem ao mundo moderno. Verdade seja dita,  as vivências académicas ajudaram na formação da personalidade de Pepela. Assim sendo, ao longo das minhas leituras percebi que a personagem foi vítima de diversas tipologias da violência psicológica, física e sexual,  quando, por exemplo, Namphahesi  obriga a esposa a deitar-se com outro homem em troca de bois.

  A cultura Kuvale não se preocupa muito com a violência física, psicológica e sexual, pois, para eles, é tudo normal.  O homem pode bater  a esposa, mas desde que não o faça no baixo ventre. E se o fizesse, teria de pagar vinte cabeça como forma de indeminização. Por outro lado,  as mulheres, aparentemente, gozavam de uma liberdade relativa. Digo isso, porque elas podiam ir à cidade vender  produtos de beleza ,mas, por outro lado, estavam acorrentadas ao sistema cultural.

Ao fim e ao cabo, podemos dizer que todo o sistema económico, os conflitos psicológicos e sociais  giravam à volta dos bois. As mulheres eram usadas  quer como objectos sexuais para o marido conseguir mais gado, quer como máquina reprodutiva para gerar filhos para estes cuidarem dos bois, quer ainda para trazerem dinheiro para casa com a venda dos produtos de beleza.   A história desta jovem ,Pepela, é recheada de  um mar de violência  em todas suas tipificações. Atendendo a estes fenómenos sociais,  mulheres como Omeva  e Pepela, levaram a cabo uma revolução contra as coisas negativas daquele sistema cultural, migrando para Luanda. Do meu ponto vista, os pais devem ter um projecto educacional para proteger  as  suas  filhas contra  os diversos tipos de violência ,pois, em certos casos, a cultura  é um dispositivo de risco para o surgimento da violência contra a mulher, quer para as mulheres kuvale, quer para as mulheres de outros  grupos culturais de Angola.  

 

 



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